Afinal, por que o PT detestou “O mecanismo”?

Leia esta interessante análise do jornalista Erick Bretas sobre a irritação petista com a série O Mecanismo, da Netflix, e entenda as razões por traz de tamanho ódio.

Quem quiser entender a reação virulenta do PT à série O Mecanismo tem que ir além das justificativas apresentadas publicamente por seus porta-vozes oficiais e oficiosos. A fala de Romero Jucá sobre “estancar a sangria” na boca do personagem de Lula virou um trunfo para os petistas porque seria a evidência mais gritante das supostas distorções factuais motivadas por interesses políticos dos criadores da série.

Mas nem de longe as licenças tomadas pelos roteiristas de O Mecanismo justificam a histeria desencadeada na militância mais engajada — os 0,17% de assinantes da Netflix que teriam aderido ao boicote à plataforma, segundo estimativa da consultoria Bites.

Tampouco elas explicam as ameaças feitas pelos líderes máximos do PT à Netflix – Lula, de processá-la; Dilma, de alertar “lideranças internacionais” sobre a suposta intromissão da empresa americana na política dos países em que atua (Dilma provavelmente está se referindo a Nicolás Maduro, Raul Castro e Evo Morales, os únicos líderes que ainda perderiam, talvez, 30 segundos ouvindo conselhos da ex-colega).

Conheci o PT por dentro ao militar no partido na juventude – e aí se vão 22 anos. Mas algumas coisas não mudam, como a crença de seus intelectuais de que a cooptação da classe artística faz parte do projeto de disputa hegemônica da esquerda. Sim, vamos falar de Gramsci.

Antonio Gramsci (1891-1937)

Antonio Gramsci (1891-1937)

Ninguém dentro da esquerda fez uma crítica ao marxismo clássico tão profunda e tão bem aceita quanto Antonio Gramsci. Escrevendo na década de 20 do século passado, o italiano percebeu que as sociedades da Europa Ocidental não marchavam, conforme Marx previra, inexoravelmente rumo à revolução socialista, como consequência das contradições internas do capitalismo. O economicismo marxista, ele acreditava, não deu a devida atenção ao sistema de valores da burguesia capitalista, preservado na esfera chamada em seus escritos de ´sociedade civil´. Gramsci se dedicou a aspectos que Marx e Engels negligenciaram: cultura, imprensa, literatura, folclore, religião. A revolução socialista só ocorreria, escreveu, quando a moral burguesa fosse subjugada pela nova ideologia. Para isso, seria necessário que intelectuais socialistas disputassem, em suas sociedades, a *hegemonia* de valores — talvez o conceito mais original do pensamento gramsciano.

Corta para o Brasil.

Em seus 13 anos de poder, o PT não teve o trabalho de cooptar a classe artística brasileira. Não foi preciso. Em sua maioria, e com valorosas exceções, nossos artistas seguiram os governos petistas como as crianças de Hamelin ao flautista. Há quem atribua esse comportamento dócil aos incentivos estatais para produções de filmes, peças e shows. Eu não. Eu sempre achei que o buraco é mais embaixo.

Nossos artistas, conscientes disto ou não, se viam (se vêem?) como protagonistas do jogo de disputa de hegemonia. Fazem no campo de atuação deles, a sociedade civil gramsciana, o que entendem que precisa ser feito enquanto os líderes políticos avançam sobre as instituições do aparato estatal. Assim, juntos, intelectuais e partido criam as condições para o surgimento de uma sociedade socialista.

Obviamente esse é um pensamento narcisista, que exagera a importância dos artistas – especialmente na visão do super pragmático PT, muito mais interessado em fazer amigos entre empreiteiros do que de entre intelectuais. Lula nunca teve o menor interesse em fazer a revolução socialista, nem subjugar a moral burguesa — e disputa de hegemonia, para ele, era ganhar eleição de quatro em quatro anos. Mas ter os artistas de forma tão majoritária e tão incondicional ao seu lado foi um conforto para os governos petistas, que puderam concentrar energia em conquistar a adesão de grupos considerados hostis: banqueiros, industriais, ruralistas, donos de escolas etc.

Quando uma obra do tamanho de O Mecanismo surge no mercado, porém, ela mostra uma enorme fissura na blindagem que a classe artística dava ao PT e a seus líderes. Não estamos falando de um documentário independente sobre um filósofo de direita. Aqui se trata de uma obra de entretenimento audiovisual, um campo onde, salvo melhor juízo, o PT e seus líderes até hoje não tiveram que lidar com uma crítica relevante – nunca tiveram, por exemplo, um Costa Gravas ou um Milos Forman a lhes apontar as câmeras como fizeram com os comunistas europeus.

Eu posso imaginar, a cada capítulo da série a que os petistas assistiam, as questões que realmente incomodavam– e que eles jamais teriam coragem de externar em público:

Como assim a Maria Ribeiro está “contra” a gente e aceitou interpretar a mulher do João Santana? Como assim a Sura Berditchevsky faz uma Dilma autoritária, tresloucada e que, ainda por cima, fala em “estocar vento”? Como assim a heroína dessa história é uma delegada da Polícia Federal? E como assim a Netflix, que veio para acabar com o poder dos nossos inimigos na mídia brasileira, apronta uma coisa dessas?

Esta última questão deve ter doído mais fundo nos petistas de alto escalão, particularmente naqueles que acreditavam no Paulo Henrique Amorim quando ele escrevia que as plataformas de streaming americanas acabariam com o poder econômico da TV brasileira. Não passava pela cabeça de ninguém que a Netflix pudesse ir atrás do mais bem sucedido cineasta brasileiro da atualidade para contar a história da Operação Lava Jato — e que José Padilha decidisse contá-la como ele a via, não como o partido autorizava (sorry, companheiros, assim funciona o show business).

E isso nos leva ao último dos motivos da grita esquerdista com O Mecanismo: a perda do controle da narrativa. A série de José Padilha é uma obra de orçamento milionário e enorme alcance potencial. Ainda assim, é pouquíssimo provável que qualquer de seus espectadores na Netflix tenha assistido à fala do personagem de Lula sobre “estancar a sangria” e acreditado que aquilo se passou daquela maneira. O público de séries – tanto na TV quando nos serviços de streaming – costuma ter um repertório cultural razoável e entender metáforas e citações. Mas o PT se viciou em contar histórias simplórias para as massas, como a propaganda em que a proposta de independência do Banco Central faz acabar a comida na mesa de uma família de classe média.

A simples hipótese de que uma série de sucesso pudesse firmar no imaginário popular a imagem de partido e líderes corruptos provocou pânico generalizado entre os petistas.

Inconformados em não controlar a maneira como os fatos são contados, de repente eles perdem também o monopólio da ficção a respeito de si próprios.

Deve ser mesmo muito duro.

Erick Bretas

Repórter

Sobre o autor | Website

Meu nome é Daladier Lima dos Santos, nasci em 27/04/1970. Sou pastor assembleiano da AD Seara/PE. Profissionalmente, trabalho com Tecnologia da Informação, desde 1991. Sou casado com Eúde e tenho duas filhas, Ellen e Nicolly.

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